quarta-feira, dezembro 12, 2007

Sobre mentiras

Já era doze anos mais velha que uma balzaca. Morena, olhos castanhos, cabelos encaracolados. Estatura mediana, pernas e seios bem torneados. Sobrava-lhe simpatia e afeto, que distribuia a todos ao redor.
Criava os filhos, dois, com carinho. Divorciara-se há alguns anos após uma duzia de traições, suspeitas e constatações. Relacionava-se ocasionalmente com um ou outro homem que aparecia; um jantar, final de semana numa praia mais afastada, sessões de cinema durante algumas semanas, mas não dava muita corda.
E mentia. E porque mentia não dava corda: tinha medo de ser pega. Mas vivia feliz com suas fantasias. Um passado duro, histórias engraçadas; tudo inventado. Aos filhos, distribuía anedotas inocentes para agradá-los.
Num jantar descompromissado conheceu o novo caso. Resolveu levar adiante, sem mentiras. Contou-lhe seu passado como realmente fora: menina de classe média, com alguns luxos. Casamento mediano, como o da irmã mais velha e das amigas de colégio e faculdade. Porém cansara-se da vida mediana e se lançara numa vida mais dinâmica e alegre, em que o seu bem-estar e sua felicidade, assim como o dos filhos, estavam sempre em primeiro lugar. E assim vivia bem, com alguns luxos e uma vida muito melhor e menos monótona do que a de casada.
O caso se interessou, respeitou, foi em frente. Na segunda vez que se encontraram, foram para a cama e os dois se satisfizeram, cada um a sua maneira, como há muito não faziam.
E assim se foi por um, dois, três meses. Ela lhe apresentou os filhos, e ele retribuiu com um almoço na casa da mãe. Eles esticaram o feriado seguinte numa viagem mais pretensiosa. Tudo continuava maravilhoso: o trabalho, o homem, os filhos, a vida.
E então a bela morena se abateu de uma crise instantânea, dessas que aparecem não-sei-de-onde e não-sei-porquê. Mas ela sabia: tudo voltara a mediandade de antes, do casamento, dos dias insossos ao lado do mesmo homem.
Então o sexo já não era o melhor. Ele já parecia um tanto flácido demais para a idade. Os filhos agora a chateavam com rusgas tolas. O trabalho até que andava bem. Resolveu que era hora de dar fim àquilo tudo.
Numa noite de quinta-feira, saíram para jantar, como nas últimas três quintas-feiras. E depois, como das outras vezes, uma esticada num flat próximo, outra noite como as demais.
- Foi incrível.
Disse assim, de repente, sem mais nem menos, mantendo a cara de paisagem.
Voltara a mentir.

terça-feira, julho 31, 2007

Sobre suéteres

- Eu quero um preto.
- Senhor, nós não vendemos suéteres.
- Sim, me veja um preto.
- Acho que o senhor não está entendendo. O senhor está num açougue. Não vendemos suéters, nem brancos nem pretos.
- Você é que não está me entendendo. Eu sei que você vende malhas e você mesma me disse por telefone que elas estariam aqui, pretas e novas, esperando por mim.
- Mas eu nunca o vi! Onde já se viu, telefonema para falar de suéteres pretos...
- Ah! Então era mentira? Você não tem?
- Não senhor.
- Não o que?
- Não nada. Nunca o vi, jamais nos falamos por telefone e sequer pensei em vender suéteres algum dia.
- Hmpf... E qual o seu nome?
- Martha.
- Me desculpe Martha, não quis incomodá-la. Vou procurar meu suéter preto.
- Não foi nada.

E saiu, repetiu os diálogos em outros três estabelecimentos - com pequenas variações, tomou 15 minutos de um atendente de farmácia mal-humorado, de uma balconista de papelaria solícita e tola e outros 15 minutos de um vendedor ambulante suburbano.

Parou, então, na loja de suéteres da esquina da praça. Entrou e, lacônico, disse:
- Boa tarde, vim buscar um suéter preto que encomendei por telefone.
- Ah! O senhor é que é sr. Alberto?
- Sim, sou eu.
- Aqui está. São oitenta reais.
- Tome cem. O troco é pela gentileza. Tenha uma boa tarde.
- O senhor também, muito obrigada.

E vovô seguiu calado, deu mais uma volta na praça e voltou, resignado, para o seu apartamento. Naquele mesmo dia, um derrame fulminante lhe matou, mas antes o velho deixou que alguns gritos esparsos chamassem a atenção dos vizinhos.

Foi velado durante a madrugada e enterrado na manhã seguinte. Manhã em que não fui à aula, que Martha passou tranquila, que o atendente da farmácia continuou a atender mal seus clientes e que a balconista vendeu papéis de embrulho. O ambulante, este foi pego pela fiscalização.

Sinto saudades do vovô, do suéter preto e de tantos outros parentes que não estão mais aqui. Queria estar com ele, com esses parentes e, acima de tudo, gostaria de estar vestindo um suéter preto...

Vovô foi enterrado, muito elegante, mas o suéter preto nem foi notado.