quarta-feira, setembro 02, 2009

A dúvida de Rabicho

Intróito intruso
Antes de mais nada acho que devo explicações aos poucos (porém qualificados) leitores d'O Mirim.

Faz mais de um mês que não escrevo nada por aqui. Mas a ideia é mesmo respeitar meu tempo. Tenho outras (muitas) atribuições que tomam grande parte do meu tempo e da minha cabeça. E sem cabeça, prefiro não escrever qualquer bobagem.

De qualquer maneira, prefiro ser otimista. Esse último mês foi muito bom, ouvi coisas muito relevantes, que acho que me ajudaram a amadurecer em alguns pontos. Dito isto, abaixo uma ficção-zinha para voltar suave e vagarosamente ao exercício das escrivinhações deste Mirim que tanto me dá prazer e orgulho. Vou contar a seguir a história do Rabicho.

***

Rabicho estava agitado. Corria feito doido, ora atrás do próprio rabo, ora buscando as correntes de vento que não podia enxergar. Como todo bom vira-lata, sempre encontrava tempo para caçar a refeição da hora e achar um rabo de saia. Ou como diziam os amigos, uma boa sarna para se coçar - com o perdão do trocadilho.

Mas aquele era um dia diferente. Nenhuma cadela sequer havia passado por perto. Rabicho, um sábio incompreendido, resolveu andar por outras bandas para ver se achava uma maneira ao menos razoável de ter do que se coçar.

Levantou-se rapidamente, correu a curta extensão da viela e deu numa grande e movimentada avenida. Uma moça de cabelos vermelhos e opiniões bastante ortodoxas chegou a se assustar com a chegada abrupta do cão. Ele fez que não percebera e desatou a descer a avenida, pela calçada, na contramão dos carros que insistiam em rivalizar o asfalto.

Passou por um ponto de ônibus, encarou as pessoas que esperavam transporte com certa brevidade e quando já se preparava para voltar a mirar o chão, deteve-se num garoto de uns 12 anos (13, talvez?) que devorava um lanche saboroso. Ameaçou chegar perto e lançar seu olhar faminto e sereno visando algumas migalhas, mas antes disso já levou uma olhada de canto e um resmungo mal educado que o fez lembrar do caminho que o aguardava. Nem barba tem, e já resmunga para mim, pensou.

De volta à rua, percebeu que se aproximava de uma ponte larga para os carros e pouco convidativa aos pedestres. Ainda assim, arriscou-se. Só não esperava aquele rechonchudo pedestre que vinha em sua direção, comendo um pacote de bolachas. Embananaram-se e acabaram se trombando, mas o gordinho deixou escapar um biscoito das mãos, abriu espaço para o bicho e todos se safaram. O pedestre livrou-se do infarto iminente. O cão, da desnutrição mortal.

A bolacha foi deglutida completamente no momento em que ele terminava de passar sobre a ponte. De volta a uma avenida larga, passou a sentir cheiro de seus pares. Como que por instinto, andou desembestado quase um quilômetro. Quando avistava cadelas simpáticas na quadra seguinte, olhou para o lado e viu o ambulante vendendo espetinhos de carne.

Mas a carne é fraca e ele estava de olho na quadra seguinte. Sem tirar o olho do ambulante, começou a atravessar a rua bem devagar, como se revisse sua decisão. Ouviu, então, a fatídica buzina. Vinha um caminhão, e com o pensamento entre a carne de gato e a das cadelas, não se decidiu para onde iria. Foi atropelado, morreu, virou estatística. Poderia ter virado sabão, é verdade. O Departamento de Zoonoses deflagrava ampla campanha de captura de cães vadios.

Rabicho virou carcaça, mas morreu feliz da vida. Pela comida que encontrara e pelas companhias que estava por encontrar. Virou poesia do cotidiano, alimentou o imaginário esfumaçado de quem procura lirismo na aridez da metrópole. E nos mostrou o mundo-cão como ele realmente é.