terça-feira, março 09, 2010

O Século de Rosinha

Desta vez, quem escreve algo n'O Mirim é a Margarida Telles.
Abaixo, um belo perfil da D. Rosinha, a quem vocês serão apresentados com o talento e precisão de quem conhece o personagem a fundo e não dispensa talento ao perfilá-lo.

Hoje D. Rosinha faz 103 anos. Parabéns para ela. E para a Magá, para quem este Mirim torce que muitos outros perfis de tanto talento sejam escritos ao longo dos próximos 103 anos

***

“Doutor, eu vim aqui porque não me sinto mais a mesma. Ando cansada, tenho pouca resistência para fazer longas caminhadas, e de vez em quando os meus ossos doem. Não sei o que eu tenho...”

“A senhora tem 97 anos!”

Esse diálogo não faz parte de uma piada, ou de um esquete de programa humorístico, embora seja uma das histórias preferidas da família da senhora em questão, dona Rosa Império, ou Rosinha, como todos a chamam. A conversa entre médico e paciente ocorreu seis anos atrás, e até hoje Rosinha não se conforma com as (poucas) limitações físicas que a idade lhe impôs. Dona de um corpo mignon, mas sempre bem vestido, e de olhos azuis que seguem com velocidade a fala rápida, sem a necessidade de óculos, a matriarca não implica com as pequenas rugas que os anos trouxeram para enfeitar suas mãos, ou com as mexas brancas nos seus cabelos curtos e fartos. O que Rosinha mais teme perder é a liberdade, que lhe foi negada quando moça, e entregue depois de ultrapassar a meia-idade.

Após a separação do marido e a morte dos irmãos, e com a criação do filho completa, a já madura Rosa viu-se finalmente dona das próprias rédeas. Mas diferente de muitas pessoas nessa mesma situação, ela não comprou um carro importado, uma casa na praia ou uma TV de muitas polegadas. Não passou tardes no shopping, no salão de beleza ou na clínica de estética. Rosinha continua a exibir as mesmas roupas tradicionais, os mesmos cabelos grisalhos e os mesmos pequenos prazeres, como assistir ao pôr do sol com a fiel poodle Puppy em seus joelhos. Mas os olhinhos azuis que vêem o dégradé de cores lá longe, estes sim estão diferentes.


Qual foi então a grande mudança na vida da anciã? A descoberta de um elixir da vida eterna? Do Emplasto Brás Cubas? Ou quem sabe a revelação do real sentido da existência? Nada disso. Sem a ajuda de juristas, a então octogenária vislumbrou algo banal para muitos. Num dos ítens do Artigo 1 do Capítulo 1 da vigente Constituição Federal, foi descoberta por dona Rosa a liberdade de expressão.

Como a protagonista de “A Velha Dama Indigna”, conto de Brecht, a retratada nesse perfil se viu no direito de dizer tudo o que lhe der na telha, tendo por justificativa o concreto fato de que passou muitas e muitas décadas omitindo sua opinião. E por “dizer tudo”, entende-se criticar em alto e bom som uma missa de sétimo dia durante a sua realização (“mas que padre insuportável”), dispensar diariamente a enfermeira que o filho contratou, alegando que não precisa de uma babá, ou praticamente fuzilar uma nova agregada da família quando essa lhe perguntou “a senhora ainda toma banho sozinha?”

Contudo, a grande revelação, que torna essa e não outra senhorinha simpática uma personagem digna de perfil jornalístico, veio somente com a chegada do novo milênio, e como não poderia deixar de ser, refere-se ao tema de onze entre dez romances best sellers: O amor. E do pior tipo, aquele platônico, doído, escondido, reprimido, mas nunca extinto.

Quem conta o episódio é a sobrinha predileta de Rosinha, chamada Wally. Com a morte de uma conhecida de bastante idade, chegou às suas mãos um álbum de fotos que pertencia ao pai da falecida, senhor digno e elegante que foi abandonado pela mulher e criou sozinho as duas filhas, até morrer em virtude de um ataque cardíaco. No álbum de páginas amareladas e capa de couro, aparecia sorridente em dezenas de fotos uma mocinha em bonitos vestidos de seda, mãos no queixo, pezinho levantado, fazendo graças para a câmera. Não era uma das filhas do senhor Alberto, ou sua esposa que fugira com outro. A jovem era Rosinha.

“Já adulta, eu havia ouvido rumores de uma paixão secreta entre minha tia e esse homem. Com o álbum, decidi que era hora de perguntar à Rosinha sobre o seu passado”, conta Wally. Ela foi então ao apartamento de sua tia, com a desculpa de estar na região, e quando a hora se fez adequada, contou da relíquia que guardava na bolsa. “Quer abri-lo junto comigo, tia?” A resposta demorou mais do que de costume, e foi negativa. Rosinha segurou o álbum com mãos firmes e foi com ele para o quarto. Era um momento único, entre ela e seu amor secreto, e não seria dividido com Wally ou com Puppy. Rosinha, pela primeira vez desde sua juventude, pôde extravasar a dor de perder Alberto.

Depois de se recompor, na discrição de seu aposento, Rosinha fez um pedido à Wally. Era chegada a hora de Caio, seu filho, descobrir a verdade sobre o coração partido da mãe que beirava os cem anos.

O amor sem a liberdade
O cenário era o Bom Retiro. Rosinha, então com vinte e poucos anos, tinha uma beleza extraordinária, e o mesmo primor em se vestir de maneira sempre elegante. Mas não podia mostrá-lo para muitos. “Meus irmãos eram muito ciumentos, e controlavam totalmente a minha vida”, conta, com a voz abafada. Nas escolhas feitas pelos três, estavam as amigas que podiam circular com Rosa, os locais que ela deveria frequentar, e como não poderia deixar de ser, o homem com quem ela iria se casar. Alberto, com seu histórico de abandono conjugal e suas duas filhas pequenas, não se enquadrava na imagem de marido ideal. Mas era tarde demais. O casal já se gostava.

“Eu não podia sair de casa desacompanhada. Para vê-lo, costumava me arrumar bonita e ficar na sacada, esperando ele passar de carro. Quando o via, o meu coração disparava.”

A história poderia ter continuado assim por muitos anos, mas não foi isso que aconteceu. Em uma tarde, a vizinha entrou na casa de Rosinha para fofocar a novidade, imagina só, o Alberto, aquele com as duas filhas, morreu de um ataque cardíaco fulminante.

“Foi o pior momento de minha vida”, diz Rosinha. “Não só perdi o meu amor, como não pude demonstrar nada além de surpresa. O meu luto foi secreto, silencioso, sem lágrimas.”

Com raiva do próprio destino, Rosa viveu a vida que queriam para ela. Casou-se sem alarde ou amor, teve um filho, foi mãe dedicada e esposa atenciosa, e divorciou-se quando a sociedade permitiu.

“Sempre achei que ela tinha algum mistério”, filosofa Caio. O casamento sem graça da mãe não combinava com sua personalidade cheia de vida, e por alguns anos o filho acreditou até mesmo que ela se casara por ter engravidado. Quando soube do grande amor de Rosinha, finalmente pôde compreender a mãe que já admirava tanto.

A liberdade sem amor
Por décadas, Rosinha morou sozinha em um simpático apartamento no bairro de Higienópolis. Passeava com as amigas, mimava Puppy e divertia a família com o seu bom-humor e seus insights. Nesses anos, marcaram-na uma grande dor e algumas alegrias.

A dor veio com a morte do neto, Alexandre. Piloto de avião, ele sempre telefonava após o pouso, para avisar que chegou bem. Um dia, depois de fazer o telefonema e deixar a família aliviada, ele entrou no carro, e o destino quis assim. Do outro neto veio a alegria. Ou melhor, as alegrias. Bisnetinhos.

E a vida vai seguindo, com seus pequenos prazeres. Um deles é a sagrada caipirinha, que nunca falta antes do almoço. O outro é contemplar a juventude dos que a cercam. Outro dia Rosinha quebrou o braço. O médico fez um longo discurso sobre a anatomia da fratura, e quando perguntou se ela havia entendido, ouviu como resposta “você acha que eu ia conseguir me concentrar, com um médico tão bonito quanto você me tratando?”

Rosinha nunca abriu mão da vaidade. Questionada por uma sobrinha neta sobre quem havia lhe dado um anel com um grande brilhante, respondeu prontamente que naquela idade, é preciso comprar as próprias joias. Ao notar os pulsos desnudos da repórter deste perfil, dona Rosa teve uma ideia. Pediu para Adriana, sua acompanhante-contra-a-vontade, buscar as pulseiras que comprara outro dia. Depois de colocá-las em meu pulso, constatou “parecem brilhantes, mas são baratinhas! Vai em um lugar que chama 25 de março...”

E assim Rosinha leva o seu século. Quando completou três dígitos, a família reuniu-se no topo do Terraço Itália, em grande estilo. Dois anos depois, teve que deixar o seu apartamento, para morar com o filho em Itatiba. Mas recentemente, avisou Caio:

"Tenho 103 anos, não sou tão velha assim, e quero voltar a morar sozinha em minha casa." Caio riu, sabendo que isso não será possível. Aos poucos, Rosa começa a ter dificuldades para andar sozinha, embora ainda consiga sair da cama todas as noites para roubar um bombom na cozinha. “Acho que essa parte de circular por ai já acabou para mim”, confessa baixinho para a repórter. “Meu papel agora é outro.” Pelos próximos tempos, Rosinha Império se dedicará a contar para todos à sua volta o grande segredo da vitalidade. Bom humor, uma caipirinha no almoço, um Pai Nosso todas as noites, e a grande amiga liberdade.

- Margarida Telles