domingo, novembro 28, 2010

Troco do café da manhã

Manhã ensolarada de domingo, rumo à padaria. Com o cão e a namorada.

- Moço, dá um trocado, pede o mendigo sujo e maltrapilho. Levemente fedido.
- Não tenho nada, murmuro, envergonhado.

Bate a culpa cristão. Come-se o pão na chapa, bebe-se a média.
Na volta, o mendigo discute delicadamente com uma colega de esquina (e rua).

- Moço, dá um trocado, dessa vez já estendendo a mão.

Acuado, moedas tilintando no bolso, busco os trocados.
Ao dar a esmola ao mendigo, a colega enfia a mão em cima da dele.
Os dois passam a disputar moedas de 10 e 25 centavos. Eu, indeciso, tento agradar todo mundo.
Notando meu olhar indeciso, a moça dispara, como se justificando:

- Ele pega o dinheiro para comprar bebida.

As esquinas de Higienópolis andam concorridas nesse fim de ano.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Crônica de uma sexta-feira vermelha

Hoje o dia foi corrido. Agradável e ao mesmo tempo incômodo.

De manhã, acordei ao lado de quem amo, parti para uma entrevista muito bacana e terminei a manhã almoçando com um amigo querido, num restaurante igualmente agradável.

Cheguei à redação, paguei minha passagem das férias (um achado, pelo que paguei), fiz mais algumas entrevistas, contatei outras pessoas que precisava, troquei e-mails importantes, para adiantar a semana que se aproxima.

Enquanto fazia tudo isso à tarde, descobri uma maneira de me concentrar e, ao mesmo tempo, me manter informado: TV transmitida em tempo real na web. Bacana. Mas aí o incômodo começou a bater. A tragédia no Rio tá demais. Demais mesmo. Assim, do tipo que incomoda mesmo a 400 km de distância.

Aí eu comecei a ficar assustado - e não com tiros, mortes ou crimes. Comecei a questionar essa cobertura complacente que se vem fazendo por aí. O tom da imprensa é algo na linha: "nossos bravos guerreiros finalmente estão vencendo estes vis meliantes". Logo lembrei de um tuíte do @bomdiaporque: "Nada como uma guerra urbana pra revelar aquele fascistinha que tem dentro de você."

Daí cada um solta o Arnaldo Jabor que vive dentro de si nessas horas. Até os nossos colegas. Longe de mim apontar o dedo para alguém. De repente no lugar deles, na correria, eu também me deixaria levar por essa maneira de enxergar as coisas. Lembrei também de uma coisa que o Camilo Vannuchi me disse certa vez sobre matérias de política: imprensa sempre tem que ser do contra, sempre tem que bater nos políticos. Estamos vendo ela bater. Bater pesado. Mas bater a favor do BOPE, do Sérgio Cabral, dessa gente toda.

Saí da redação com isso em mente. Entrei no carro, dei partida e liguei o rádio, em ato contínuo. Sintonizado na CBN, como de praxe, escuto:

- ...o fotógrafo Paulo Whitaker, da agência Reuters, foi ferido no ombro. Ele seguiu para um hospital da região.

Como aprendi na faculdade, a notícia é mais impactante quando os personagens são nossos conhecidos. Eu já entrevistei Paulo, para o #CentroAvante. O tema? O crack. Em junho, ele fez a reportagem multimídia Cracolândia (leia mais aqui). Ele defendia a legalização da droga para que os usuários traficassem menos entre si e pudessem ser acompanhados de perto. "Uma teoria meio maluca", me disse ele.

Maluco, Paulo, é o que a gente está vendo. Mas parece que é isso aí, mesmo. A zona sul continua na bolha, pirotecnia dá audiência e pobre não compra jornal.

As coisas só fazem menos sentido para mim agora.

segunda-feira, novembro 15, 2010

No saguão

A causa era nobre: buscá-los no aeroporto. Acontece que menos por ansiedade do que por habilidade do motorista, a trupe encarregada de resgatá-los chegou mais cedo, coisa de hora e meia.

Daí dispuseram-se, depois dum suco de laranja (com muito gelo) e de confundirem terminal 1 com terminal 2, a inspecionar fisionomias. Havia toda uma regra: o cansaço daqueles que chegavam tinha que ser levado em conta e, do outro lado, o excesso de simpatia de quem aguardava ansioso também não poderia ser considerado.

Assim, dois deles passaram a mirar os passageiros que desembarcavam e, do lado de cá, outros dois miravam os familiares ansiosos. Como a maioria dos passageiros que chegavam eram franceses, estava difícil encontrar alguém que desembarcasse exprimindo sentimentos. Mesmo que uma bomba explodisse, a moça alta de traços firmes olharia de maneira pausada, com a cara impassível para, logo em seguida, retomar seu rumo até o ponto de táxi. Assim eram os franceses e, neste caso, isso fazia deles uma gente realmente chata de se analisar.

Os dois que analisavam os familiares - majoritariamente, mães e pais de classe média aguardando filhos, irmãos, primos e parentes de um modo geral - tinham um amplo leque de reações. A mãe que conversava com o amigo do filho enquanto o rebento não cruzava a porta. Mal considerava o que o garoto falava, tanta era a tensão do porvir. Aposto que o garoto poderia fazer uma grande revelação....

- Tia, o Pedrinho tá usando drogas!

...que ela revidaria...

- Pare de falar, garoto. Estou que não me aguento com esse menino que não sai por essa porta. Parece que nunca viu um free shop! Que coisa!

Mais um critério a ser levado em conta: o que diziam os familiares. Se fosse para elencar aqui, essas páginas não serviriam nem pros cumprimentos iniciais.

Dessa maneira passaram-se quase duas horas, num misto de análises de personas e esquetes cômicas, como o caso dos avôs sem-dedo de um ou a flatulência de origem desconhecida denunciada pelo outro. Até que...

- A mamãe chegou! (frase imediatamente seguida de barulho de sapatos correndo desesperados)

....e então, de analistas passamos todos a objetos de análise, deitados no divã, aquele frio e hermético divã que se tornara o saguão do aeroporto no fim da tarde de domingo.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Obituário de um burocrata triste

Nasceu, cresceu e virou adulto dando, nas duas primeiras etapas, mais atenção ao que estava por vir na terceira. Daí trabalhou, foi promovido, sentiu-se confortável com tudo aquilo que conseguiu. Desistiu. Mudou de rumo, pura vontade de repetir o caminho desde o começo.

Trabalhou, trabalhou, não foi promovido. Demitiu-se. Trabalhou mais, trabalhou muito mais, foi promovido. Sentiu-se confortável. Muito confortável. E ali, no comando, realizou tudo o que queria. Tudo mesmo. Era como se a vida profissional completasse todos os outros campos, onde nada acontecia - ou ao menos não com a graça que ele gostaria. E viveu bem assim, por uns 30 anos.

Aí, chegou a aposentadoria, a pressão para que parasse de trabalhar. Não quis parar, nunca queria parar. Pararam com ele. Viveu sua velhice amargurado, como quem não quisesse vivê-la. Mais vinte anos. Vinte demorados, demasiados, exagerados e custosos anos. Morreu.

No obituário, dois parágrafos apenas para enumerar realizações de sua brilhante carreira. Entrou para os anais de sua área de atuação. Partiu desta cheio de predicados, embora infeliz. Foi embora resignado, achando nunca ter sido aquilo que realmente fora. Nem o que queria ter sido.