segunda-feira, dezembro 19, 2011

A leveza das primaveras

Olhou para a borda da janela e percebeu que o pequeno arranjo de rosas murchara; os botões, olhando mais para o chão que para o céu, assinalavam a morte próxima. Logo acima, avistou a bela primavera desabrochando flores de um rosa vivo e pétalas etéreas.

Deixou a mesa e o computador, moveu-se alguns passos e, resoluto, brandiu: "É preciso jogar essas rosas no lixo. Estão feias e tristes, feito os familiares de um morto ao cabo do velório." Com o cenho decidido, agarrou o vaso de cristal pela boca e o levou para a cozinha. As rosas permaneciam murchas, tristes, quase mortas. A água que as alimentava tinha um aspecto esbranquiçado, reflexo da total falta de vida daquele conjunto de vaso e flores.

Tomou as rosas com cuidado, mas sem se ater à quantidade de espinhos. Estabeleceu um método: cortava cada flor em três partes, dividindo-a em baixo caule, médio caule e botão morto. Reunia, então, os pedaços num pequeno ramalhete macabro e sem vida para jogá-lo no saco de lixo. Assim fez com os quatro botões - três vermelhos e um amarelo - até que o volume no saco branco fosse considerável.

Enquanto preparava a terceira rosa para o descarte, apertou o caule com força. Não calculou a existência de um espinho - nem que ele se vingaria pelo ato de violência. A almofada de seu dedão, então, foi perfurada e sangrou. Ato contínuo, levou o dedo à boca, chupou o sangue e engoliu o choro que já se precipitava. Era seu superego irredutível, cobrando uma justificativa pela atitude violenta e impensada. Recompôs-se e, ainda com aquele amargor que nos prende a garganta num nó, colocou-se a terminar o serviço.

Ao olhar para o horizonte, encontrou-se instintivamente com a primavera, que parecia sorrir impassível ao dia ensolarado e à brisa leve daquele quente fim de tarde. Num estalo, deixou as rosas mortas rumo à planta viva e, de tesoura nas mãos, pôs-se a ceifar dois ou três galhos que insistiam em invadir a casa pela abertura da janela.

Juntou as partes colhidas da planta e, de volta a cozinha, colocou-as sobre o saco das rosas mortas. Pôs-se a podar cada ramo da primavera de forma a produzir um arranjo. Ao cabo do serviço, lavou o vaso e encheu-o d'água limpa e fresca, de um cristalino refrescante. Com as mãos úmidas, ajeitou o ramalhete de primaveras no vaso e perdeu mais alguns minutos para tornar o conjunto harmonioso. Levou o arranjo até a sala e o dispôs sobre a mesa. Era como se as flores da primavera, recém-separadas da árvore mãe, se exibissem, desinibidas, na nova casa, abastecidas daquela água fresca.

Voltou à cozinha, juntou os restos das rosas no saco e levou-o até o cesto de lixo orgânico. Lavou as mãos ao voltar e, mais leve, prostrou-se a contemplar o novo ramalhete que formara. A luz morna e amarelada do fim de tarde tomava conta da sala - e de seus pensamentos. "É preciso, às vezes, dar um fim aos botões murchos, tirá-los de cena, e contemplar o que a primavera (e sua luz) trazem de novo às nossas vidas", pensava. Sentou-se novamente e voltou o olhar para a tela do computador, sobre a mesa. Voltou, também, às suas obrigações nada coloridas daquele dia que, até então, se arrastava dolorasamente devagar. Dali para o anoitecer foi um piscar de olhos. Mais leve, mais colorido e mais fluido, como o arranjo de primaveras.

Um comentário:

Magá disse...

Que texto bonito, Duda. Às vezes a vida faz a gente esquecer de como a leveza é importante. Que bom que a primavera ta na sua janela pra nos lembrar...