domingo, dezembro 19, 2010

Pouco Muda Tudo

Daí uma ideia vem à cabeça, um sentimento ao peito
e
.
..
...
.....
......
.......
........
crack
........
.......
......
.....
....
...
..
.
muda tudo aqui por dentro.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Travessa

"quantas histórias não se escondem numa travessa?"

Fica a ideia. Quem sabe um dia não vira livro.
Hoje só veio o mote.

domingo, novembro 28, 2010

Troco do café da manhã

Manhã ensolarada de domingo, rumo à padaria. Com o cão e a namorada.

- Moço, dá um trocado, pede o mendigo sujo e maltrapilho. Levemente fedido.
- Não tenho nada, murmuro, envergonhado.

Bate a culpa cristão. Come-se o pão na chapa, bebe-se a média.
Na volta, o mendigo discute delicadamente com uma colega de esquina (e rua).

- Moço, dá um trocado, dessa vez já estendendo a mão.

Acuado, moedas tilintando no bolso, busco os trocados.
Ao dar a esmola ao mendigo, a colega enfia a mão em cima da dele.
Os dois passam a disputar moedas de 10 e 25 centavos. Eu, indeciso, tento agradar todo mundo.
Notando meu olhar indeciso, a moça dispara, como se justificando:

- Ele pega o dinheiro para comprar bebida.

As esquinas de Higienópolis andam concorridas nesse fim de ano.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Crônica de uma sexta-feira vermelha

Hoje o dia foi corrido. Agradável e ao mesmo tempo incômodo.

De manhã, acordei ao lado de quem amo, parti para uma entrevista muito bacana e terminei a manhã almoçando com um amigo querido, num restaurante igualmente agradável.

Cheguei à redação, paguei minha passagem das férias (um achado, pelo que paguei), fiz mais algumas entrevistas, contatei outras pessoas que precisava, troquei e-mails importantes, para adiantar a semana que se aproxima.

Enquanto fazia tudo isso à tarde, descobri uma maneira de me concentrar e, ao mesmo tempo, me manter informado: TV transmitida em tempo real na web. Bacana. Mas aí o incômodo começou a bater. A tragédia no Rio tá demais. Demais mesmo. Assim, do tipo que incomoda mesmo a 400 km de distância.

Aí eu comecei a ficar assustado - e não com tiros, mortes ou crimes. Comecei a questionar essa cobertura complacente que se vem fazendo por aí. O tom da imprensa é algo na linha: "nossos bravos guerreiros finalmente estão vencendo estes vis meliantes". Logo lembrei de um tuíte do @bomdiaporque: "Nada como uma guerra urbana pra revelar aquele fascistinha que tem dentro de você."

Daí cada um solta o Arnaldo Jabor que vive dentro de si nessas horas. Até os nossos colegas. Longe de mim apontar o dedo para alguém. De repente no lugar deles, na correria, eu também me deixaria levar por essa maneira de enxergar as coisas. Lembrei também de uma coisa que o Camilo Vannuchi me disse certa vez sobre matérias de política: imprensa sempre tem que ser do contra, sempre tem que bater nos políticos. Estamos vendo ela bater. Bater pesado. Mas bater a favor do BOPE, do Sérgio Cabral, dessa gente toda.

Saí da redação com isso em mente. Entrei no carro, dei partida e liguei o rádio, em ato contínuo. Sintonizado na CBN, como de praxe, escuto:

- ...o fotógrafo Paulo Whitaker, da agência Reuters, foi ferido no ombro. Ele seguiu para um hospital da região.

Como aprendi na faculdade, a notícia é mais impactante quando os personagens são nossos conhecidos. Eu já entrevistei Paulo, para o #CentroAvante. O tema? O crack. Em junho, ele fez a reportagem multimídia Cracolândia (leia mais aqui). Ele defendia a legalização da droga para que os usuários traficassem menos entre si e pudessem ser acompanhados de perto. "Uma teoria meio maluca", me disse ele.

Maluco, Paulo, é o que a gente está vendo. Mas parece que é isso aí, mesmo. A zona sul continua na bolha, pirotecnia dá audiência e pobre não compra jornal.

As coisas só fazem menos sentido para mim agora.

segunda-feira, novembro 15, 2010

No saguão

A causa era nobre: buscá-los no aeroporto. Acontece que menos por ansiedade do que por habilidade do motorista, a trupe encarregada de resgatá-los chegou mais cedo, coisa de hora e meia.

Daí dispuseram-se, depois dum suco de laranja (com muito gelo) e de confundirem terminal 1 com terminal 2, a inspecionar fisionomias. Havia toda uma regra: o cansaço daqueles que chegavam tinha que ser levado em conta e, do outro lado, o excesso de simpatia de quem aguardava ansioso também não poderia ser considerado.

Assim, dois deles passaram a mirar os passageiros que desembarcavam e, do lado de cá, outros dois miravam os familiares ansiosos. Como a maioria dos passageiros que chegavam eram franceses, estava difícil encontrar alguém que desembarcasse exprimindo sentimentos. Mesmo que uma bomba explodisse, a moça alta de traços firmes olharia de maneira pausada, com a cara impassível para, logo em seguida, retomar seu rumo até o ponto de táxi. Assim eram os franceses e, neste caso, isso fazia deles uma gente realmente chata de se analisar.

Os dois que analisavam os familiares - majoritariamente, mães e pais de classe média aguardando filhos, irmãos, primos e parentes de um modo geral - tinham um amplo leque de reações. A mãe que conversava com o amigo do filho enquanto o rebento não cruzava a porta. Mal considerava o que o garoto falava, tanta era a tensão do porvir. Aposto que o garoto poderia fazer uma grande revelação....

- Tia, o Pedrinho tá usando drogas!

...que ela revidaria...

- Pare de falar, garoto. Estou que não me aguento com esse menino que não sai por essa porta. Parece que nunca viu um free shop! Que coisa!

Mais um critério a ser levado em conta: o que diziam os familiares. Se fosse para elencar aqui, essas páginas não serviriam nem pros cumprimentos iniciais.

Dessa maneira passaram-se quase duas horas, num misto de análises de personas e esquetes cômicas, como o caso dos avôs sem-dedo de um ou a flatulência de origem desconhecida denunciada pelo outro. Até que...

- A mamãe chegou! (frase imediatamente seguida de barulho de sapatos correndo desesperados)

....e então, de analistas passamos todos a objetos de análise, deitados no divã, aquele frio e hermético divã que se tornara o saguão do aeroporto no fim da tarde de domingo.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Obituário de um burocrata triste

Nasceu, cresceu e virou adulto dando, nas duas primeiras etapas, mais atenção ao que estava por vir na terceira. Daí trabalhou, foi promovido, sentiu-se confortável com tudo aquilo que conseguiu. Desistiu. Mudou de rumo, pura vontade de repetir o caminho desde o começo.

Trabalhou, trabalhou, não foi promovido. Demitiu-se. Trabalhou mais, trabalhou muito mais, foi promovido. Sentiu-se confortável. Muito confortável. E ali, no comando, realizou tudo o que queria. Tudo mesmo. Era como se a vida profissional completasse todos os outros campos, onde nada acontecia - ou ao menos não com a graça que ele gostaria. E viveu bem assim, por uns 30 anos.

Aí, chegou a aposentadoria, a pressão para que parasse de trabalhar. Não quis parar, nunca queria parar. Pararam com ele. Viveu sua velhice amargurado, como quem não quisesse vivê-la. Mais vinte anos. Vinte demorados, demasiados, exagerados e custosos anos. Morreu.

No obituário, dois parágrafos apenas para enumerar realizações de sua brilhante carreira. Entrou para os anais de sua área de atuação. Partiu desta cheio de predicados, embora infeliz. Foi embora resignado, achando nunca ter sido aquilo que realmente fora. Nem o que queria ter sido.

quinta-feira, outubro 28, 2010

O amor ao qual se aspira

Fazia sol e a conversa era árida.

- A escolha é difícil.
- Tudo bem. Dinheiro a gente conquista com o próprio trabalho. Paz de espírito não tem preço. E, ademais, temos amor um pelo outro, que é o que importa.
- ...
- Morando em Higienópolis ou Paraisópolis. Não acha?

Foram felizes para sempre.

domingo, agosto 22, 2010

A "ética" do sensacionalismo

Este será assim, bem rápido.

Outro dia entrevistei - quase um bate-papo, na verdade - o promotor Augusto Rossini. Ele é o responsável pela Promotoria Comunitária do Centro, sobre a qual eu escrevi no #CentroAvante.

Em busca de um e-mail ou telefone na internet (ok, preciso melhorar a organização da agenda...), me deparei com esse vídeo.





Bem, não vou me ater aqui ao que penso sobre jornalismo de determinadas redes de TV, mas compartilho o que aconteceu há pouco aqui em casa.

Estava de bobeira quando tocou o interfone e o porteiro disse que, em cinco minutos, subiria a Ellen, uma entrevistadora do Censo. Puxa, que legal, eu pensei, vou participar do Censo. A Ellen chegou, me fez perguntas e, a título de curiosidade, perguntou qual era a minha profissão.

Ela ficou tão embasbacada que pediu pra ver uma revista com alguma coisa que eu tivesse feito. Acho que queria comprovar a história, mas pediu de um (sem) jeito que parecia pedir autógrafo. Peguei a última edição da revista, mostrei uma matéria e esclareci que "sou jornalista dos que faz notícia, e não dos que fazem fotos", como ela disse.

Aí você pensa: toda essa aura em torno da profissão - que em nada é revestida desse "gramur" todo - e o Zé que ganha cinco ou seis digitos como apresentador acha que é isso mesmo. Tá tudo legal quando você topa arriscar que duas meninas miseráveis tomem tiro em troca de uma "exclusiva" com o sequestrador. (o que, neste caso, pode até ter contribuido para que a m... toda acontecesse). E ainda tem a moral de dizer que seguiram a "ética".

Na minha terra isso tem outro nome.
adieu!

segunda-feira, agosto 09, 2010

Na aula de palhaço


"Aquele tio ali é de um circo russo. Ele é assim, meio novo, mas é muito importante. Veio aqui para conhecer vocês." As crianças olham o tio de vinte e poucos anos como se mirassem um alienígena. A aula continua, ainda assim.

Nino é mais curioso. Fica olhando para o moleque russo entre uma acrobacia e outra. Dá tchau, num pedido informal de emprego. O olheiro asiático retribui com um sorriso. O emprego estaria garantido, se fosse o caso. A lorota é sustentada pelos professores. Palhaços, insistem na brincadeira. Os olhares infantis sorriem para o farsante que assiste, com enfado, à aula.


Chega ao fim duas horas depois, quando já é hora das nove crianças partirem para o próximo compromisso da agenda. Saem sem dar pelota ao russo. Seus minutos de fama se foram. O enfado não.

Agora é hora de acreditar na próxima mentira, seja na aula de história ou de inglês.
E eu, o russo, parti para a galhofa seguinte.

atualização às 21h32 de domingo, 15/8.
p.s.: pelo jeito, a Ásia é a nova Europa no meu mapa-mundi. Sorry!

Foto: imagem usada sob licença Creative Commons (CC). Conheça o trabalho do autor aqui.

sexta-feira, abril 30, 2010

Eu, Warhol, o crack e o centro

Há duas semanas fui assistir à exposição do Andy Warhol na Estação Pinacoteca, no centro de São Paulo. O local não poderia ser mais pertinente - e não estou falando do Memorial da Resistência, instalado no local onde nos anos da Ditadura funcionou o DOPS (Depto. de Ordem Política e Social, aparelho do governo que investigava, prendia, torturava e matava quem fosse contra o sistema). Falo da região do entorno mesmo.

Quem decide deixar o carro em casa e para ir até lá de metrô passa por uma das bordas do perímetro original da Cracolândia. Essa denominação "perímetro original" é minha, não li em nenhum lugar, mas creio que seja essa, sim. É o lugar onde estão rolando as obras da "Nova Luz", nome bonito usado pelo poder público para uma de nossas maiores vergonhas.

Mas vamos ao que importa. No curto trecho entre a Estação da Luz e a Estação Pinacoteca, 450m segundo o Google Maps, vi moradores de rua circulando, vagando sem rumo. Achei meio esquisito na ida. Eram 10h de um feriado, a rua estava fazia, me senti acuado ante à realidade dos fatos. Um misto de bunda-molescência (neologismo meu, ok?) e culpa burguesa, confesso.

Relaxei e fui curtir a exposição. Está ótima, cheia de quadros, instalações e informações interessantes sobre ele, sobre pop art e tudo o mais que foi dito pela grande imprensa quando do lançamento da mostra. Na saída, fiz minhas comprinhas na loja do museu, e aproveitei e almocei com a Magá por lá. Preço atraente, bom custo-benefício.

Perto das 13h, saímos de lá rumo ao metrô Luz, para voltar pra casa. Era só repetir o trajeto de 450m da volta, cruzar a estação da Luz e cair na estação. Mas tive também que me deparar com uma realidade que vejo nos jornais, apenas, e que está sempre muito distante de mim. Na volta, entendi que quem vagava pela rua eram usuários de crack, esperando os dealers aparecerem para que pudessem dar vazão ao vício.

Aparentemente, eles apareceram no ínterim que passei na exposição. Quando saí, cinco ou seis (dez?) usuários consumiam, à luz do dia e sem esconder os cachimbos, suas pedras de crack. Duas (ou dois, posto que pareciam travestis) consumiam enconstados na porta da estação.

Não, não quero dizer o quanto isso é absurdo, ou "a que ponto chegamos". O medo que eu senti indo pro museu deu lugar à tristeza, na volta. Eu e a Magá passamos no meio deles e não fomos notados. Eles estavam chapados, alheios a tudo que acontecia à sua volta.

Quando comentei isso com as pessoas, as reações variavam entre o desprezo e o deboche. Algo como "Que novidade...". É, não é novidade. Mas também não preciso achar isso legal. Na exposição, numa das frases, Warhol dizia considerar celebridades do cinema tão glamourosas e notáveis quanto autores de crimes notáveis. À Luz do que vi e ouvi, a afirmação dele faz algum sentido, não literal, é claro.

Longe de mim querer parecer uma beata interiorana espantada com a realidade da metrópole. Mas resolvi falar sobre isso por aqui. Dias depois de ter comentado o assunto com minhas tias, ouvi de uma delas: "Seu tio disse que você não precisava ter feito esse caminho. Você poderia ter cortado o trecho pelo estacionamento da Sala São Paulo".

Ok, há bolhas de segurança na região (e na cidade). Mas isso basta? Por que não, em vez de fugir por atalhos seguros, meu tio não me diga que podemos dar um passeio despretensioso pela cidade, despreocupados, sem precisar de um atalho para a segurança?

sábado, abril 24, 2010

Coincidências nem tão singelas

Passei (e passo) tanto tempo sem aparecer no blog, que a partir de agora nem vou mais justificar as ausências. Vamos adiante, então.

Ano passado, quando O Mirim experimentava um retorno à atividade (que nunca aconteceu, é verdade), eu escrevia dia ou outro. E, em algumas dessas vezes, tinha boas ideias para outros posts. Aí, escrevia uma sinopse e deixava nos rascunhos. É bom deixar alguns temas cozinhando, aí a vida dá um jeito de fazê-los reaparecer.

Hoje aconteceu de novo, com um dos temas mantidos na panela. Desta vez, as coincidências vieram bater na minha porta. Semana passada, não me lembro onde e muito menos por que, ouvi mais de uma vez a expressão memento mori. São momentos em que nos damos conta da finitude da nossa existência terrena - mesmo que isso signifique apenas uma de várias, para algumas pessoas.

Sentado ao lado do Victor Ferreira, hoje, na redação, vi o título da coluna da Eliane Brum no site da Época na tela do computador dele. O título? Memento mori, claro. (sobre a coluna da Eliane Brum, aqui a íntegra).

Bem, era hora de voltar a falar de coincidências.
Sempre acontece, como foi hoje com o memento mori.

É bom que esses temas batam à porta, me fazem pensar sobre eles. Por exemplo, fico agora imaginando se tive meus memento mori. Indo fundo, acho que a morte da minha mãe tenha sido um deles, o primeiro talvez. A morte abrupta de uma pessoa próxima (mas nem tanto quanto a mama), ano passado, acho que foi o mais recente.

O importante é incorporar isso como um aprendizado - mesmo sabendo que, ao escrever isso, eu pareço um terapeuta chato. Mas é verdade. Nesse caso, independente das coincidências, acho que lido bem com a finitude da vida. Quer pela minha história, quer pela maneira como entendo a vida.

Mas já houve coincidências importantes, que me fizeram - e fazem até hoje, quando acontecem - repensar, reinterpretar e digerir questões antigas, que às vezes deixamos largadas lá no fundo, bem longe do nosso dia a dia. Como ano passado, quando descobri como a música que estava no topo das paradas quando nasci dizia muito sobre a relação que tenho, nos últimos anos, desenvolvido com uma pessoa muito próxima e querida. Ou quando vivi o dilema ético da lágrima - talvez a mais simbólica dessas coincidências.

Acho que depois dessa pensata, definiria "coincidências" como pequenos acontecimentos cotidianos que não permitem que a gente se esqueça daquilo que não devemos - nem podemos - deixar de lado. E, em casos mais frívolos (afinal de contas, nem tudo na vida precisa ser visceral), para tornar o cotidiano menos besta e óbvio.

Hasta luego, amigos!

atualização: entrei no blog e vi que esse não era o post. Como ele era um rascunho do dia 24/4/09, é como se tivesse sido publicado naquele dia. Quando me dei conta disso? Hoje, dia 24/4/10. Um ano depois. Acho que este episódio encerra o que penso sobre as tais coincidências.

terça-feira, março 09, 2010

O Século de Rosinha

Desta vez, quem escreve algo n'O Mirim é a Margarida Telles.
Abaixo, um belo perfil da D. Rosinha, a quem vocês serão apresentados com o talento e precisão de quem conhece o personagem a fundo e não dispensa talento ao perfilá-lo.

Hoje D. Rosinha faz 103 anos. Parabéns para ela. E para a Magá, para quem este Mirim torce que muitos outros perfis de tanto talento sejam escritos ao longo dos próximos 103 anos

***

“Doutor, eu vim aqui porque não me sinto mais a mesma. Ando cansada, tenho pouca resistência para fazer longas caminhadas, e de vez em quando os meus ossos doem. Não sei o que eu tenho...”

“A senhora tem 97 anos!”

Esse diálogo não faz parte de uma piada, ou de um esquete de programa humorístico, embora seja uma das histórias preferidas da família da senhora em questão, dona Rosa Império, ou Rosinha, como todos a chamam. A conversa entre médico e paciente ocorreu seis anos atrás, e até hoje Rosinha não se conforma com as (poucas) limitações físicas que a idade lhe impôs. Dona de um corpo mignon, mas sempre bem vestido, e de olhos azuis que seguem com velocidade a fala rápida, sem a necessidade de óculos, a matriarca não implica com as pequenas rugas que os anos trouxeram para enfeitar suas mãos, ou com as mexas brancas nos seus cabelos curtos e fartos. O que Rosinha mais teme perder é a liberdade, que lhe foi negada quando moça, e entregue depois de ultrapassar a meia-idade.

Após a separação do marido e a morte dos irmãos, e com a criação do filho completa, a já madura Rosa viu-se finalmente dona das próprias rédeas. Mas diferente de muitas pessoas nessa mesma situação, ela não comprou um carro importado, uma casa na praia ou uma TV de muitas polegadas. Não passou tardes no shopping, no salão de beleza ou na clínica de estética. Rosinha continua a exibir as mesmas roupas tradicionais, os mesmos cabelos grisalhos e os mesmos pequenos prazeres, como assistir ao pôr do sol com a fiel poodle Puppy em seus joelhos. Mas os olhinhos azuis que vêem o dégradé de cores lá longe, estes sim estão diferentes.


Qual foi então a grande mudança na vida da anciã? A descoberta de um elixir da vida eterna? Do Emplasto Brás Cubas? Ou quem sabe a revelação do real sentido da existência? Nada disso. Sem a ajuda de juristas, a então octogenária vislumbrou algo banal para muitos. Num dos ítens do Artigo 1 do Capítulo 1 da vigente Constituição Federal, foi descoberta por dona Rosa a liberdade de expressão.

Como a protagonista de “A Velha Dama Indigna”, conto de Brecht, a retratada nesse perfil se viu no direito de dizer tudo o que lhe der na telha, tendo por justificativa o concreto fato de que passou muitas e muitas décadas omitindo sua opinião. E por “dizer tudo”, entende-se criticar em alto e bom som uma missa de sétimo dia durante a sua realização (“mas que padre insuportável”), dispensar diariamente a enfermeira que o filho contratou, alegando que não precisa de uma babá, ou praticamente fuzilar uma nova agregada da família quando essa lhe perguntou “a senhora ainda toma banho sozinha?”

Contudo, a grande revelação, que torna essa e não outra senhorinha simpática uma personagem digna de perfil jornalístico, veio somente com a chegada do novo milênio, e como não poderia deixar de ser, refere-se ao tema de onze entre dez romances best sellers: O amor. E do pior tipo, aquele platônico, doído, escondido, reprimido, mas nunca extinto.

Quem conta o episódio é a sobrinha predileta de Rosinha, chamada Wally. Com a morte de uma conhecida de bastante idade, chegou às suas mãos um álbum de fotos que pertencia ao pai da falecida, senhor digno e elegante que foi abandonado pela mulher e criou sozinho as duas filhas, até morrer em virtude de um ataque cardíaco. No álbum de páginas amareladas e capa de couro, aparecia sorridente em dezenas de fotos uma mocinha em bonitos vestidos de seda, mãos no queixo, pezinho levantado, fazendo graças para a câmera. Não era uma das filhas do senhor Alberto, ou sua esposa que fugira com outro. A jovem era Rosinha.

“Já adulta, eu havia ouvido rumores de uma paixão secreta entre minha tia e esse homem. Com o álbum, decidi que era hora de perguntar à Rosinha sobre o seu passado”, conta Wally. Ela foi então ao apartamento de sua tia, com a desculpa de estar na região, e quando a hora se fez adequada, contou da relíquia que guardava na bolsa. “Quer abri-lo junto comigo, tia?” A resposta demorou mais do que de costume, e foi negativa. Rosinha segurou o álbum com mãos firmes e foi com ele para o quarto. Era um momento único, entre ela e seu amor secreto, e não seria dividido com Wally ou com Puppy. Rosinha, pela primeira vez desde sua juventude, pôde extravasar a dor de perder Alberto.

Depois de se recompor, na discrição de seu aposento, Rosinha fez um pedido à Wally. Era chegada a hora de Caio, seu filho, descobrir a verdade sobre o coração partido da mãe que beirava os cem anos.

O amor sem a liberdade
O cenário era o Bom Retiro. Rosinha, então com vinte e poucos anos, tinha uma beleza extraordinária, e o mesmo primor em se vestir de maneira sempre elegante. Mas não podia mostrá-lo para muitos. “Meus irmãos eram muito ciumentos, e controlavam totalmente a minha vida”, conta, com a voz abafada. Nas escolhas feitas pelos três, estavam as amigas que podiam circular com Rosa, os locais que ela deveria frequentar, e como não poderia deixar de ser, o homem com quem ela iria se casar. Alberto, com seu histórico de abandono conjugal e suas duas filhas pequenas, não se enquadrava na imagem de marido ideal. Mas era tarde demais. O casal já se gostava.

“Eu não podia sair de casa desacompanhada. Para vê-lo, costumava me arrumar bonita e ficar na sacada, esperando ele passar de carro. Quando o via, o meu coração disparava.”

A história poderia ter continuado assim por muitos anos, mas não foi isso que aconteceu. Em uma tarde, a vizinha entrou na casa de Rosinha para fofocar a novidade, imagina só, o Alberto, aquele com as duas filhas, morreu de um ataque cardíaco fulminante.

“Foi o pior momento de minha vida”, diz Rosinha. “Não só perdi o meu amor, como não pude demonstrar nada além de surpresa. O meu luto foi secreto, silencioso, sem lágrimas.”

Com raiva do próprio destino, Rosa viveu a vida que queriam para ela. Casou-se sem alarde ou amor, teve um filho, foi mãe dedicada e esposa atenciosa, e divorciou-se quando a sociedade permitiu.

“Sempre achei que ela tinha algum mistério”, filosofa Caio. O casamento sem graça da mãe não combinava com sua personalidade cheia de vida, e por alguns anos o filho acreditou até mesmo que ela se casara por ter engravidado. Quando soube do grande amor de Rosinha, finalmente pôde compreender a mãe que já admirava tanto.

A liberdade sem amor
Por décadas, Rosinha morou sozinha em um simpático apartamento no bairro de Higienópolis. Passeava com as amigas, mimava Puppy e divertia a família com o seu bom-humor e seus insights. Nesses anos, marcaram-na uma grande dor e algumas alegrias.

A dor veio com a morte do neto, Alexandre. Piloto de avião, ele sempre telefonava após o pouso, para avisar que chegou bem. Um dia, depois de fazer o telefonema e deixar a família aliviada, ele entrou no carro, e o destino quis assim. Do outro neto veio a alegria. Ou melhor, as alegrias. Bisnetinhos.

E a vida vai seguindo, com seus pequenos prazeres. Um deles é a sagrada caipirinha, que nunca falta antes do almoço. O outro é contemplar a juventude dos que a cercam. Outro dia Rosinha quebrou o braço. O médico fez um longo discurso sobre a anatomia da fratura, e quando perguntou se ela havia entendido, ouviu como resposta “você acha que eu ia conseguir me concentrar, com um médico tão bonito quanto você me tratando?”

Rosinha nunca abriu mão da vaidade. Questionada por uma sobrinha neta sobre quem havia lhe dado um anel com um grande brilhante, respondeu prontamente que naquela idade, é preciso comprar as próprias joias. Ao notar os pulsos desnudos da repórter deste perfil, dona Rosa teve uma ideia. Pediu para Adriana, sua acompanhante-contra-a-vontade, buscar as pulseiras que comprara outro dia. Depois de colocá-las em meu pulso, constatou “parecem brilhantes, mas são baratinhas! Vai em um lugar que chama 25 de março...”

E assim Rosinha leva o seu século. Quando completou três dígitos, a família reuniu-se no topo do Terraço Itália, em grande estilo. Dois anos depois, teve que deixar o seu apartamento, para morar com o filho em Itatiba. Mas recentemente, avisou Caio:

"Tenho 103 anos, não sou tão velha assim, e quero voltar a morar sozinha em minha casa." Caio riu, sabendo que isso não será possível. Aos poucos, Rosa começa a ter dificuldades para andar sozinha, embora ainda consiga sair da cama todas as noites para roubar um bombom na cozinha. “Acho que essa parte de circular por ai já acabou para mim”, confessa baixinho para a repórter. “Meu papel agora é outro.” Pelos próximos tempos, Rosinha Império se dedicará a contar para todos à sua volta o grande segredo da vitalidade. Bom humor, uma caipirinha no almoço, um Pai Nosso todas as noites, e a grande amiga liberdade.

- Margarida Telles