domingo, junho 07, 2009

A ética da lágrima

Um dia (outro dia, na verdade, bem quando retomei O Mirim), falei daqueles assuntos que caem no nosso colo, sem que a gente queira ou espere que eles caiam. Pois essa semana aconteceu de novo. E tudo no mesmo dia. (Ante)ontem, sexta-feira.

Logo pela manhã, rolou minha primeira entrevista (a segunda desse tipo) com uma vítima de pedofilia. A entrevista fará parte do meu TCC, que entrego no meio do semestre que vem. A diferença entre a de sexta-feira e a outra, feita pela Carol e pela Bia, é que, da primeira vez, se tratava de uma criança violentada há pouco tempo. E por isso a mãe e o avô foram os entrevistados. Mas na sexta o personagem era uma mulher de 45 anos. Crescida e, portanto, apta e disposta a falar sobre o trauma que sofreu na infância.

Tudo transcorreu relativamente bem, dentro das possibilidades. A entrevista rolando, um bom câmera filmando, luz ok, entrevistada com boa oratória. Mais para o final, com mais de 40 minutos de entrevista, lanço uma pergunta delicada - as mais difíceis de se fazer sempre ficam para o fim, por uma questão prática (se o entrevistado quiser parar o papo ali, ao menos já se tem grande parte do conteúdo).

Pedi que ela contasse como tinha ficado a relação dela com o pai, o abusador, depois da fase adulta.

A história é comovente. Já velho, o pai, antes envolvido com drogas e álcool, se refugiara em outro estado. Não mantinham contato, vítima e abusador, por questões óbvias. Eis que uma doença o acomete, e somente em SP ele teria tratamento adequado. Só a casa da filha, vítima sua com 11 anos, poderia acolher o doente.

Num ato de coragem e altruísmo, ela aceitou o pai em casa. Não se viam. Ela passou meses saindo do quarto apenas para pegar comida, amedrontada pelas lembranças da infância interrompida. A medicação do pai ficava a cargo de seus (muitos) filhos. Até o dia em que ele pediu um abraço. Para a neta de cinco anos. Cinco. Ela fora abusada aos onze.

O que fazer? Era um pedido sincero de abraço? Valeria arriscar a integridade da própria filha para não ter que lidar com o trauma?

Ela, então, saiu do casulo. A curta distância entre seu quarto e o do pai levou longos 40 minutos para ser percorrida. Muita coisa veio à tona. O medo, a raiva, tudo. Ela enfrentou tudo.

Nas palavras dela, ao menos pelo que registraram meus ouvidos: "Quando olhei para ele, naquela cadeira de rodas, ele já não era aquele homem forte de antes, já não trazia as feições antigas, seu rosto estava magro. Ele era mais frágil do que eu pensava. Era um homem doente". Pediu um abraço, pediu perdão por tudo. Ela o abraçou - e o perdoou.

Ouvi a tudo isso a um metro de distância, ao som de um choro fundo e forte, de quem resgata algo lá de longe e de dentro. E eu impassível, aparentemente insensível, vi a fatídica lágrima cair até a maçã do rosto, realçada pelo contra-luz armado para a filmagem. Quis chorar. Me contive para não perder o controle da entrevista.

Mas me pus em xeque. Eu tinha o direito de remexer no passado de uma desconhecida, mesmo que ela aceitasse? E por que me segurei? Será que meu choro, uma lágrima que fosse, não era a forma mais sincera de dizer que eu me solidarizava a ela, que compartilhava daquela dor? Mesmo sem ter ideia do tamanho daquilo, eu não DEVERIA ter demonstrado algo?

Essa pergunta foi embora, até que me pus sozinho, a caminho do trabalho. Não passamos incólumes às situações do dia-a-dia. Nós somos transformados, para o bem e para o mal, pelos fatos do cotidiano. E então esse questionamento ficava indo e voltando, o tempo todo.

Paralelamente, à tarde, estava curioso para pegar a Época dessa semana, que saiu mais cedo em virtude do acidente do Air France 447. Só consegui meu exemplar ao final do dia. De volta para casa, dei uma folheada na revista e parei na coluna da Ruth de Aquino, que sempre fecha a edição. Tenho uma simpatia especial pela coluna, que sempre trata de maneira delicada ou indignada (sempre bem opinativa) sobre o acontecimento mais relevante da semana.

E o tema que fechava a coluna dessa semana era justamente sobre esse sentimento que bateu à minha porta naquele dia. A ética do choro. Encerro o post de hoje com a reprodução do trecho final da coluna, que traduziu (e me fez concluir) o sentimento gerado por situações como essa:

"Se um psicanalista, por profissão, precisa racionalizar a dor alheia para confortar, um jornalista precisa agir como, para contar a dor de seus entrevistados? Abstrair-se completamente? Ficar frio? A repórter Martha Mendonça, que ajudou a resgatar histórias das vítimas [do voo 447 para Época], escreveu no blog Mulher 7x7, de Época: "A pior parte de ser jornalista é falar com familiares de alguém que acaba de morrer em situação trágica. Já entrevistei mães faveladas com filhos embaixo dos escombros depois da chuva. Os pais de uma menina que morreu de bala perdida. Mães de crianças desaparecidas e pais de meninos assassinados. Não foram poucas as vezes em que chorei. Sem perder o controle. Não é ético o jornalista que mostra que se importa?""

Eu chorei, atrasado, na sexta à noite, sentado no sofá de casa, quando li a última frase do trecho acima. E agora, de novo, relendo e revisando o post.

2 comentários:

LOVE IDEA disse...

Dudaaa...
Chorando tbm!!!
Bjo

nathalia.z disse...

Edu, quem me conhece mais de perto (como colega de trabalho ou amigo) sabe o quanto me envolvo com as histórias que conto - e com as que ouço sem poder contar. A gente não entra na vida do outro impunemente, como diria Eliane Brum e como você traduziu muito bem neste texto. Eu também choro por dores que não são minhas, vibro com a felicidade de um personagem. E me apaixono e me inconformo por eles. Torço muito, se você quer saber, pra não perder nunca essa capacidade de me ligar a essas pessoas antes como gente que como jornalista. E torço para que você também. Melhor para nós, para nossos entrevistados e para a nossa profissão. Beijo grande, querido.